O mistério da cruz! Glória, suplício e tentação de escândalo para os cristãos; loucura inaceitável, insanidade deplorável para o mundo!

Na Sexta-feira Santa, durante a solene celebração da Paixão do Senhor, há um rito impressionante, comovente: o diácono, igreja adentro, traz uma cruz velada… e três vezes, descobrindo-a pouco a pouco, proclama, cantando: “Eis o lenho da cruz, do qual pendeu a salvação do mundo!” Frase estupenda, escandalosa, impressionante: no absurdo da cruz, na derrota da cruz, a Igreja proclama, que brotou a vida do mundo! Como pode ser? Naquela celebração, o povo, de joelhos, responde ao diácono: “Vinde, adoremos!” É belo, este rito; é comovente! Mas, como é difícil, como é dolorosa, na nossa vida e na vida do mundo, a realidade que ele exprime – o mistério da cruz, de uma humanidade crucificada, de um mundo crucificado!

A cruz de nosso Senhor Jesus Cristo está no centro da nossa fé, pois, por ela, o Senhor Jesus venceu a nossa morte e ingressou na vida de ressurreição. Por isso, São Paulo exclama: “Quanto a mim, não aconteça gloriar-me senão na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo” (Gl 6,14). Mas, o que é a cruz? É uma tragédia, é um sinal de derrota, é resultado de uma injustiça miserável, é silêncio de Deus, que parece esquecer a dor do Filho e se cala diante da maldade, do pecado e da morte. A cruz de Jesus, em si mesma, é um terrível escândalo… em si mesma, seria sinal que Deus não existe e, se existe, não liga para a dor humana, para a injustiça que massacra o inocente… Na cruz de Cristo está significada toda a cruz do mundo e da humanidade: a cruz do inocente que sofre, a cruz dos órfãos, dos que morrem na guerra, a cruz dos pobres, sem nome, sem vez nem voz… Na cruz do Senhor estão tantos povos e raças oprimidos, dizimados pela ganância e pelo ódio… Na cruz de Cristo está simbolizada toda dor, todo fracasso, toda solidão, todo peso do mundo… Na cruz do Senhor está tudo aquilo que nos deixa com uma pergunta presa na garganta: “Por que tanta dor, tanto sofrimento, tanta injustiça? Por que Deus se cala? Por que permite? Onde ele está?” Não pode compreender o mistério da cruz quem não se deixa atingir e questionar por estas perguntas, por estas dores, por estes prantos! Não pode proclamar o triunfo do Senhor quem não suportou o absurdo da cruz do Senhor! A cruz não é um ornamento, uma brincadeira; a cruz é um ícone, um símbolo, uma parábola impressionante e dolorosa! Na cruz está significado tudo aquilo que tanto nos apavora! E, no entanto, Jesus diz, no evangelho de hoje, que era necessário passar pela cruz: “Do mesmo modo que Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado…” (Jo 3,14). Palavra impressionante, confirmada após a ressurreição: “Não era necessário que o Filho sofresse tudo isso e assim entrasse na sua glória?” (Lc 24,26). Por que era necessário? Por que no caminho do Cristo e do cristão tem que estar a cruz, bendita e maldita? Por quê? E Para quê?

Para mostrar-nos até onde o pecado nos levou e até onde o amor de Deus está disposto a ir por nós.

Vivemos num mundo crucificado, somos uma humanidade crucificada, porque nos afastamos da vida, que é Deus. Como o povo de Israel no caminho do deserto, que perdeu a paciência e murmurou contra o Senhor (cf. 1a. leitura), assim a humanidade foi e vai se fechando para o Deus da vida e foi e vai encontrando a morte. Quantas serpentes venenosas mordem nossa existência! Mas, Deus não se cansou de nós: “Amou tanto o mundo que entregou o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crer, não morra, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). Era necessário! Era necessário mostrar a gravidade do nosso pecado, da nossa loucura de querer construir nossa existência sem Deus. Era necessário também mostrar até que ponto Deus nos leva a sério, até que ponto sofre conosco, até que ponto nos é solidário: ele não explica o sofrimento; silenciosamente, toma-o sobre os ombros, sofre conosco até o mais baixo da humilhação, da solidão e da dor: “Ele esvaziou-se de si mesmo, assumindo a condição de escravo e tornando-se igual aos homens. Encontrado com aspecto de homem, humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,7). No seu Filho único e querido, o Pai se condói com nossa dor, “com-sofre” conosco, como Deus de “com-paixão”. Ninguém, contemplando a cruz, pode pensar que Deus é indiferente e frio ante o sofrimento do mundo. Ele não nos explica o sofrimento; toma-o sobre os ombros, silencioso e cheio de dolorido amor e piedade! Contemplar o mistério da cruz é levar a sério que existe dor e miséria no mundo; é deixar-se tocar por todo sofrimento humano… mas é também compreender que Deus assumiu tudo isso em Jesus crucificado e venceu tudo isso na ressurreição. Contemplar a cruz dá-nos a graça de nunca perder a esperança, mesmo diante dos maiores percalços. Quem contempla a cruz, não perde a confiança em Deus, não se desespera, não se despedaça: “Do mesmo modo que Moisés levantou a serpente no deserto, assim é necessário que o Filho do Homem seja levantado, para que todos aqueles que nele crerem (que o contemplarem), tenham a vida eterna” (Jo 3,16). A cruz, portanto, joga-nos na realidade da vida e do mundo – realidade crua…. mas, cheios de esperança, pois sabemos que Cristo fez dela, da cruz, um sinal de amor e ressurreição.

Por isso a cruz era necessária; por isso Paulo não queria gloriar-se a não ser na cruz de nosso Senhor Jesus Cristo; por isso hoje louvamos o mistério da cruz; por isso nos dispomos a não só traçar o sinal da cruz sobre nós com devoção, mas a viver nossa cruz unidos a Cristo, invencíveis na esperança da ressurreição; por isso cantamos hoje com a Igreja:

“Do Rei avança o estandarte, / fulge o mistério da cruz, / onde por nós foi suspenso / o Autor da vida, Jesus.

Ó cruz feliz, dos teus braços / do mundo o preço pendeu; / balança foste do corpo / que ao duro inferno venceu!

Árvore esplêndida e bela, / de rubra púrpura ornada, / de os santos membros tocar / digna, só tu foste achada.

Salve, ó cruz, doce esperança, / concede aos réus remissão; / dá-nos o fruto da graça, / que floresceu na Paixão”.

 

D. Henrique Soares da Costa ( !3.Set.2019)