Este diálogo de contraste e disputa entre o querubim e o ladrão, que as Igrejas de tradição siro-oriental conservamainda hoje e que é posto em cena no Domingo de Páscoa ou na manhã de Segunda de Páscoa, também chamada «do anjo» ou, mais exatamente, «do ladrão», é uma verdadeira celebração litúrgica, aliás muito popular, representada na igreja por dois diáconos, de acordo com um texto que remonta provavelmente ao século V. Tal texto é atribuível a Narsai ou, talvez com maior propriedade, a Efrém, e é precedido do canto de alguns salmos por parte do coro. (...) Esta forma litúrgica tem ainda hoje uma grande popularidade. E, nalgumas igrejas siríacas do Iraque, é mesmo celebrada diversas vezes durante o ano como sufrágio pelos defuntos. Os gregos veneram o bom ladrão como santo, já desde a antiguidade, no dia 23 de março. Os latinos, dando-lhe o nome de Dimas, celebram-no no dia 25 do mesmo mês. (...)
Não é apenas na igreja siro-oriental que se celebra o Bom Ladrão como figura do cristão e do ser humano, que encontra na cruz de Cristo a sua salvação. Muitos textos litúrgicos da semana santa das Igrejas orientais realçam o papel do Bom Ladrão como ícone maior do poder salvador da cruz. A própria liturgia bizantina insiste na relação entre o ladrão e a cruz: é a cruz que leva o ladrão à fé, que o torna teólogo, e o conduz ao paraíso. (...)
Bom ladrão, a imagem da esperança
À míngua de ícones da esperança, quem esperaria que o bom ladrão se tornasse imago spei (imagem da esperança)? Consciente disto mesmo, Bento XVI escreve: «Deste modo, na história da devoção cristã, o bom ladrão tornou-se a imagem da esperança, a consoladora certeza de que a misericórdia de Deus pode alcançar-nos mesmo no último instante; mais: a certeza de que, depois de uma vida transviada, a oração que implora a sua bondade não é vã. ‘O bom ladrão acolhendo, grande esperança me dais’, reza, por exemplo, também o Dies Irae».
Timothy Radcliffe, a propósito da famosa frase: «Hoje estarás comigo no Paraíso», interpreta-a de uma maneira diferente da habitual. Para ele, o ‘hoje’ de Jesus quer dizer que Deus tem um sentido do tempo diferente do nosso. «Deus perdoa-nos ainda antes de nós termos pecado, e Jesus promete levar aquele ladrão para o Paraíso antes ainda da sua própria ressurreição». E isto pelo facto de Deus viver no Hoje da eternidade. «A eternidade de Deus irrompe agora nas nossas vidas. A eternidade não é aquilo que acontece no fim dos tempos, depois de termos morrido. De cada vez que nós amamos e perdoamos, pomos um pé na eternidade, que é a vida de Deus».
Para o famoso autor dominicano, o «bom ladrão» consegue o Paraíso sem pagar nada por ele. No fundo, é como todos nós: «Apenas temos de aprender a aceitar presentes». Deus está continuamente a oferecer-nos a felicidade. «Nós temos de aprender a manter os olhos e as mãos abertos para podermos agarrá-la quando ela chega. Somos continuamente bombardeados pela felicidade que Deus nos atira: oxalá possamos ter a rapidez de visão suficiente para a localizar».
Qual é a felicidade que Deus nos oferece? A que é descrita como «Paraíso», uma palavra originária da Pérsia e que significa «jardim murado». Ora, toda a história do Evangelho é escrita no sentido de nós compreendermos que somos convidados a encontrar a nossa morada nessa felicidade. Deus compraz-se na nossa felicidade. Diz a cada um de nós quão maravilhoso é que existamos. «Nós podemos estar na presença de Deus com todas as nossas fraquezas e falhas, como o bom ladrão, e, mesmo assim, Deus continua a comprazer-se na nossa própria existência, prometendo-nos o Paraíso».
A felicidade significa «que nós partilhamos a complacência que Deus põe na humanidade. Significa que também devemos partilhar a dor de Deus frente ao sofrimento dos seus filhos e filhas. Não se pode ter uma sem o outro. A dor escava os nossos corações para haver um espaço onde a felicidade de Deus possa morar».
Contrariamente ao que poderíamos imaginar, o oposto da felicidade não é a tristeza. «É ter um coração de pedra. É recusarmo-nos a deixar que outras pessoas nos toquem. É envergar uma armadura que protege o nosso coração, impedindo-o de se comover. Para sermos felizes, temos de ser arrancados de nós mesmos, tornando-nos, por isso, vulneráveis. A felicidade e a dor verdadeira conduzem ao êxtase. Libertam-nos de nós mesmos, para nos comprazermos noutras pessoas e sentirmos dor pela sua dor. O mau ladrão recusa-se a isso. O bom ladrão atreve-se a fazê-lo, mesmo na cruz. E é por isso que pode receber o dom do Paraíso».
Carlos Nuno Vaz
Sem comentários:
Enviar um comentário
Nota: só um membro deste blogue pode publicar um comentário.