sábado, 23 de agosto de 2025

 ACADEMIA MARIANA “THEOTOKOS”

Curta Reflexão XX

PAX





(Lafond, Dom Gérard, OSB, L’éveil du regard. Origine et destinée de la Création, Lethielleux – Groupe Parole et Silence, Paris, 2010, 647 p., 235 x 150, ISBN 978-2-249-62045-4)

O Fundador dos Cavaleiros de Nossa Senhora, Dom Gérard Lafond OSB, era um verdadeiro monge beneditino: rezava e trabalhava. Profundamente mariano. Morreu cedo, mas deixou uma obra notável, sobretudo escritos dirigidos aos seus filhos espirituais, os Cavaleiros de Nossa Senhora.

O livro que ilustra esta Curta Reflexão chegou ao seu mosteiro no dia em que faleceu. Já não teve tempo de apreciar uma das suas obras mais brilhantes.

O Cónego Doutor Jorge Coutinho, do Cabido de Braga e Professor da Universidade Católica (Braga), falecido em 9 de Novembro de 2015, deixou uma recensão magnífica sobre este livro na revista Theologica, da Universidade Católica Portuguesa.

Esta recensão foi publicada, como se disse, na revista Theologica (2010, ano da morte de Dom Lafond).

Transcreve-se, na íntegra, esta recensão para que se possa aquilatar um pouco da sabedoria e da personalidade inquieta de Dom Gérard Lafond, vista por um brilhante intelectual português:


“Dom Gérard Lafond, quarto Abade do mosteiro beneditino de Wisques (França), escreveu este grosso volume a partir da sua própria prática da lectio divina, não deixando de convidar à sua leitura em modo próximo daquela, meditativo e orante.

A ideia de fundo, que atravessa todo o texto e é sugerida pelo título e pelo subtítulo do livro, é a de que boa parte dos homens e mulheres do início do terceiro milénio carecem de despertar o seu olhar sobre o mundo, não propriamente para se espantarem e maravilharem como as crianças, mas para se interrogarem sobre a questão mais fundamental e decisiva: de onde vimos e para onde vamos – nós e o mundo que habitamos?

O caso é que, como em certa parte da sua obra escreve J.-P. Sartre, a condição de muitos é a de quem acordou em plena viagem numa história de loucos, sem saber de onde vem nem para onde vai. E, pior, eles tão pouco se inquietam com isso. Ou então, como diria Frossard, delegam na ciência a resposta para todas as suas inquietações.

Só que a ciência só em parte menor pode responder e deixa necessariamente sem resposta a questão essencial sobre o sentido último do homem e do mundo. Só a fé religiosa, em plano meta-científico ou metafísico, o pode fazer.

Ao longo de mais de seiscentas páginas, servindo-se de recursos filosóficos, exegéticos e teológicos, Dom Gérard Lafond procura mostrar como um olhar que desperta do seu sono positivista, quando não materialista, acaba por descobrir, maravilhado, que este Universo em evolução – do qual Jacques Monod disse, em Le hasard et la nécessité, que se oferece ao homem como a um cigano sem pátria, surdo à sua música, indiferente às suas esperanças, como aos seus sofrimentos e aos seus crimes – representa, para além da Criação originária, a contínua acção do Criador sobre ele e, com isso, a nova Criação a nascer diante dos nossos olhos, ou seja, a sua Transfiguração ou os novos Céus e nova Terra de que fala o Apocalipse.

Ciência e fé apresentam-se então, não como inimigas e excludentes entre si, mas em complementaridade epistemológica. Os temores, ou mesmo os medos, que se apresentam no panorama do mundo presente estão a convidar a um regresso à sabedoria, para além da ciência e da técnica.

Aquela há-de vir, quer de aprofundamentos filosóficos a que as últimas descobertas da ciência convidam, quer do aprofundamento do entendimento das verdades reveladas que, com a sabedoria, será também despertador da esperança para a humanidade. Indispensável será que a ciência saiba abrir-se para além de si mesma e, nos seus limites, que afinal são limiares, saiba dar lugar às instâncias de saber meta-científicas ou metafísicas. É nesse nível que se situa a fé.

No âmbito desta, há que redescobrir, muito particularmente, o Mistério da Encarnação e o Mistério Pascal. Com efeito, é com a entrada de Deus na história humana como um de entre os demais humanos e com a sua transcensão do mundo e do tempo pela Morte e Ressurreição gloriosa que se inscreve nesse mundo da Criação o dinamismo da Nova Criação.

Nesta linha, Dom Gérard Lafond convida a, depois de uma mudança de olhar, segui-lo neste livro «abrindo os olhos do coração à luz deífica, e sobretudo a embrenhar-se no caminho que conduz ao Reino partindo do claro-escuro dos começos para caminhar na iluminação pela Luz de Cristo, até, finalmente, chegar ao abrasamento do Amor no Espírito Santo, à glória do Pai» (p. 24).

Estas três vias próprias da vida espiritual são também as três grandes partes deste grosso volume, a um tempo feito de comentário bíblico, de teologia e de contemplação orante.

E não sem uma sensível dose de poesia na linguagem utilizada, não fosse a poesia a transfiguração do nosso olhar sobre as coisas e a re-criação da linguagem já gasta e vazia sobre o mais profundo das mesmas.

Oferece-nos deste modo um texto em que segue os grandes passos da história de Deus entrando na história do homem e do mundo.

Assim, na primeira parte, põe diante do leitor coisas como a cosmogonia bíblica, com relevo para o emergir da luz no caos primordial e do homem como imagem de Deus; a antropogonia e a queda ou o mistério do pecado original; a inexorável maré montante do mal; a sabedoria e o Verbo de Deus; terminando com o sugestivo capítulo «A Sua estrela no Oriente».

Na segunda parte – Iluminação –, coloca-nos diante da nova Luz que se levantou, do combate inaugural do Messias, dos sete dias da Nova Criação e de outros significativos passos da vida e acção de Jesus, com relevo para a Transfiguração e para a morte e descida aos infernos.

A terceira parte – O abrasamento – acompanha os factos em torno da Ressurreição, a Ascensão e a Vinda do Espírito Santo, dedicando um capítulo à luz no caminho de Damasco e outro ao Senhor do Apocalipse, terminando com o capítulo «Do tempo à eternidade».

Enfim, um livro extenso, que o autor recomenda seja lido aos bocadinhos, meditativamente, como quem, de adormecido no torpor de um olhar envelhecido, se deixa, fascinado, despertar para um novo olhar sobre si próprio e sobre o mundo.”

(Jorge Coutinho)

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