Do lado de Deus, para o bem de todos
(Homilia no início do Ano Judicial - 15 .Janeiro. 2019)
1. Uma saudação amiga, antes de mais,
a todos vós aqui reunidos pela abertura do novo Ano Judicial. Quisestes vir a esta catedral e
abrir a Deus a vossa vida e profissão numa altura importante. Ficai certos de
que a vossa atitude e disposição serão absolutamente atendidas, tanto mais
quanto é isso mesmo que Deus pretende e espera.
Como diz o Ressuscitado no
Apocalipse: «Olha que Eu estou à porta e bato: se alguém ouvir a minha voz e abrir
a porta, Eu entrarei na sua casa e cearei com ele e ele comigo» (Ap 3, 20). Ou como lemos na Epístola de
Tiago: «Aproximai-vos de Deus e Ele aproximar-se-á de vós» (Tg 4, 8).
Tudo fica assim mutuamente garantido:
a vossa abertura a Deus, aqui demonstrada; e, sobretudo, a disposição divina de
vir até cada um de vós, para irradiar depois no vosso exercício judicial.
2. Deus já veio ao vosso encontro na
Palavra que escutámos.
E com grande incidência no que vos traz aqui, em prol da Justiça, sempre mais e
melhor Justiça.
- Que ouvimos na 1ª Leitura? Ouvimos
um trecho da Epístola aos Hebreus, com palavras assim, sobre os verdadeiros
protagonistas do futuro definitivo, como hão de ser os homens: «Não foi aos
anjos que Deus submeteu o mundo futuro de que falamos. Alguém afirmou numa
passagem da Escritura: “Que é o homem para que Vos lembreis dele, o filho do
homem para dele Vos ocupardes? Vós o fizestes um pouco inferior aos anjos, de
honra e glória o coroastes, tudo submetestes a seus pés».
É já e inteiramente a revelação da
dignidade humana, princípio essencial de qualquer discurso, base indispensável
da Justiça. Revelação espantosa, que faz de cada pessoa quase um anjo, e de
cada gesto quase um sacramento. O ser humano, com o que cada um transporta e
pode ser, é verdadeira manifestação da glória divina, ou seja, do poder criador
de Deus.
Assim disse Santo Ireneu, logo no
segundo século cristão: «A glória de Deus é o homem vivo», acrescentando que «a
vida do homem é a visão de Deus». Compreende-se: Sendo tão divino por criação,
o homem só poderá realizar-se em Deus, que o culmina e sacia.
Justiça que realmente o queira ser
terá de admitir em cada pessoa a consistência que o trecho bíblico apresentou:
quase um anjo, coroado de glória e honra, acima de tudo o mais. É excelente
afirmação da dignidade humana. É exigente requisição da nossa correspondência,
tanto mais quanto pouco óbvio em tantíssimos casos, por miséria alheia e por
cegueira nossa.
A esta luz, a Justiça ganhará outra
intensidade. O Catecismo da Igreja Católica define-a assim: «A justiça é a
virtude moral que consiste na constante e firme vontade de dar a Deus e ao
próximo o que lhes é devido. A justiça para com Deus chama-se “virtude da
religião”. Para com os homens, a justiça leva a respeitar os direitos de cada
qual e a estabelecer, nas relações humanas, a harmonia que promove a equidade
em relação às pessoas e ao bem comum» (CIC,
nº 1807).
Vale a pena insistir no enunciado.
Para com Deus, a Justiça trouxe-vos aqui. Para com os homens, a Justiça leva-nos
a respeitar os direitos de cada qual. Direito à vida, que suporta tudo o mais,
em todo o curso da existência humana, da conceção à morte natural,
decididamente respeitada e solidariamente acompanhada, em cada homem ou mulher,
em igual dignidade e respetiva alteridade. Direito a tudo o que a vida requer,
da família em que se nasce à sociedade em que se convive, da instrução à saúde,
do trabalho ao lazer, do ficar ao migrar.
- Tantas são hoje as fronteiras da
Justiça quantas as necessidades humanas a corresponder! Do plano universal a
nacional, do local ao particular. Nunca ultrapassável este, no que respeita à
dignidade pessoal.
3. Tudo isto acontece em tempo
comunicacional intenso, que requer à Justiça e aos seus servidores uma atenção
muito particular. Em
si mesma, a comunicação é um bem, um grande bem, pelo que permite de mais informação
e partilha. Na prática, depende do sentido de Justiça que realmente se tenha,
quer da parte de quem informa, quer da parte de quem recebe a informação.
Aos primeiros requer-se honestidade,
não deturpando factos, não julgando a priori,
não recolhendo fraudulentamente os dados, nem os manipulando depois. Aos
segundos, que somos nós todos, requer-se sentido crítico e cuidado, muito
cuidado, na aceitação do que nos é dado como certo e tantas vezes o não é, e
vai eliminando reputações pelo caminho.
A este respeito diz-nos também o
Catecismo da Igreja Católica: «A informação mediática está ao serviço do bem
comum. A sociedade tem direito a uma informação fundada na verdade, na
liberdade, na justiça e na solidariedade». Para continuar, citando o Vaticano
II: «O uso reto deste direito requer que a comunicação seja, quanto ao objeto,
sempre verídica, e, quanto ao respeito pelas exigências da justiça e da
caridade, completa; quanto ao modo, que seja honesta e conveniente, quer dizer,
que na obtenção e difusão das notícias, observe absolutamente as leis morais,
os direitos e a dignidade do homem» (CIC,
nº 2494).
Reconheçamos que este é um ponto
determinante na sociedade que somos e, sobretudo, queiramos ser, em termos de
Justiça essencial. Nada se constrói tendo por base a desconfiança geral, fruto
duma comunicação negativa, segundo o famigerado lema “boa notícia não é
notícia”.
No Evangelho que escutámos, Jesus
deparou-se com alguém possuído por um mau espírito, que também informava a
despropósito. Ouvimos a continuação: «Jesus repreendeu-o, dizendo: “Cala-te e
sai desse homem!”. O espírito impuro, agitando-o violentamente, soltou um forte
grito e saiu dele».
O Espírito de Cristo nos levará a
fazer o mesmo, para nos libertamos a todos com uma comunicação justa e sadia. Como
insiste o Catecismo: «A solidariedade é consequência duma comunicação
verdadeira e justa e da livre circulação das ideias que favorecem o
conhecimento e o respeito pelos outros» (CIC,
nº 2495).
Para dar a cada um o que lhe é
devido, a Justiça como virtude básica e como prática judicial tem de incidir
particularmente na qualidade da comunicação, de que afinal todos somos agentes,
ativos ou passivos. Para que em tudo se respeite a todos e ninguém saia lesado.
Mesmo quando for preciso denunciar o mal – e infelizmente não faltam ocasiões
para isso – tenhamos em conta que se trata de pessoas, que nunca perdem a
dignidade essencial que as qualifica.
No campo do Direito, muito evoluímos
nos últimos séculos, como sucessivas Declarações o manifestam. No campo
prático, a aplicação demora e a benevolência escasseia. Essa mesma benevolência
com que nos assemelharíamos a Deus, que, mesmo perante o mal, não deixa de
esperar o bem. Como neste trecho da profecia de Ezequiel, quando também não
faltavam motivos de reprovação: «Porventura me hei de comprazer com a morte do
pecador – oráculo do Senhor Deus – e não com o facto de ele se converter e
viver?» (Ez 18, 23).
Deste lado quereis estar, do lado de
Deus para o bem de todos. E assim mesmo se aplicará a cada um de vós a
bem-aventurança de Cristo: «Felizes os que têm fome e sede de justiça, porque
serão saciados» (Mt 5, 6).
Sé de Lisboa, 15 de janeiro de 2019
+ Manuel, cardeal-patriarca
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