Vigílias: Nas primeiras horas da noite (muitas vezes logo após a ceia da Terça-feira de Carnaval), cantavam-se os 12 salmos habituais, seguidos de leituras que podiam, conforme os costumes, ser intercaladas por responsórios cantados. Estas leituras pretendiam ser uma didaxis que instruía a comunidade sobre todos os mistérios que se celebram nesse dia. Normalmente liam-se passagens das Epístolas de São Paulo, textos dos Padres da Igreja e homilias sobre o Evangelho do Dia mas também podiam ser incluídas Profecias do Antigo Testamento. Uma tradição monástica que perdurou até ao séc. XX colocava os 14 salmos Graduais (119 a 133) ainda antes das Vigílias de todas as quartas-feiras da Quaresma.
O nascer do sol era saudado pelo Miserere (salmo 50), o salmo baptismal por excelência, que se dizia em todos os dias da Quaresma, como preparação para a Vigília Pascal. Ainda de manhã, eram apresentados os penitentes públicos que iam ser reintegrados na Igreja na Quinta-feira Santa. Com Ramos do ano anterior, preparavam-se então as cinzas que eram depostas junto do altar, no ângulo da epístola.
Ao longo do dia, rezavam-se (entre outros) os sete salmos penitenciais. Sustentado pela oração, toda a comunidade cumpria um jejum estrito e vivia em espírito de solidariedade fraterna. Por volta da Hora Nona, a hora da Morte do Senhor, os fiéis reuniam-se novamente na igreja para a celebração penitencial:
Francis Poulenc compôs este motete penitencial sobre um texto igualmente utilizado por Roland de Lassus:
Timor et tremor venerunt super me,et caligo cecidit super me:miserere mei, Domine, miserere mei,quoniam in te confidit anima mea.
Exaudi, Deus, deprecationem meam,quia refugium meum es tu et adjutor fortis.Domine, invocavi te, non confundar.
Após o canto dos Salmos, procedia-se à bênção e imposição das Cinzas. Inicialmente colocadas sobre os penitentes públicos na tarde do primeiro sábado da Quaresma, este rito foi posteriormente estendido a todos os batizados e acabou por dar o nome ao próprio dia. Uma das orações recitadas ainda hoje pelo bispo ou sacerdote era:
Lembra-te, ó homem, que és pó e ao pó regressarás.
Diogo Dias Melgaz compôs este motete para a Sé de Évora. Interpela-nos a nossa reflexão sobre que música se ouve nos nossos dias, nas celebrações das catedrais.
Terminada a imposição das cinzas, organizava-se a procissão penitencial até à igreja estacionária na qual se celebrava a missa e finalmente o Ofício de Vésperas. Terminada a celebração, partilhava-se a ᾰ̓γᾰ́πη, a única refeição do dia. Tomando o nome do próprio Amor divino, esta refeição tradicional remonta aos próprios Apóstolos. Era uma refeição partilhada, na qual os membros mais ricos da assembleia serviam os mais pobres.
Convém recordar que este esquema era comum a todos os dias penitenciais, entre os quais a Quarta-feira de Cinzas é como que uma "irmã mais nova". Infelizmente, as transformações sociais da Idade Média anteciparam progressivamente esta celebração para a manhã, colocando a refeição única à hora do almoço e retirando-lhe o carisma caritativo da agápe, que persistiu apenas na Igreja Católica Indiana de rito Oriental. No séc. XX, esta tradição belíssima foi felizmente recuperada pelo Caminho Neocatecumenal.
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