O Retorno de Baal?
Uma crítica contemporânea ao monoteísmo, à luz do paganismo antigo e das suas sombras
Durante milénios, civilizações do Antigo Oriente Próximo ergueram-se sob a égide de deuses como Baal — senhor das tempestades, fertilidade e da vida que renasce. Contudo, a história que chegou até nós, especialmente através das páginas da Bíblia, apresenta Baal não como um salvador, mas como um
monstro, um rival abominável do Deus de Israel, a quem os cananeus teriam oferecido o sacrifício de crianças — especialmente primogénitos.
A ascensão de Yahweh e o desaparecimento de Baal marcaram não apenas uma mudança religiosa, mas uma verdadeira revolução espiritual e civilizacional. Hoje, alguns autores e pensadores contemporâneos resgatam essa memória antiga com uma inquietação provocadora: teria a longa dominação de Yahweh — o Deus bíblico — corrompido a própria ideia de divindade? Estaríamos prontos, num mundo fragmentado e desiludido, para considerar o regresso simbólico de deuses antigos?
Baal, na tradição ugarítica e cananeia, era um deus da fertilidade, da chuva e da vitória sobre a morte. O seu culto estava profundamente ligado aos ciclos agrícolas, à vida natural e às forças primordiais. Era amado como “príncipe da paz” e celebrado como protector da comunidade. Contudo, a sua imagem
sofreu um golpe irreversível quando os escritores bíblicos o retrataram como rival perverso de Yahweh.
No livro dos Reis, por exemplo, o profeta Elias enfrenta os sacerdotes de Baal no Monte Carmelo, onde se dá a vitória do Deus de Israel. Mas as críticas mais severas apontadas ao culto de Baal concentram-se numa prática hoje inaceitável e brutal: o sacrifício de crianças. As Escrituras acusam os baalistas de oferecerem os seus próprios filhos em holocausto — algo que, se historicamente verdadeiro, configuraria uma das práticas mais hediondas de toda a Antiguidade.
De facto, escavações arqueológicas em sítios como Cartago (associada a cultos fenício-baalistas) revelaram restos de crianças em urnas funerárias, sugerindo rituais de oferenda — ainda hoje debatidos entre arqueólogos quanto à sua frequência e finalidade.
Com o declínio das cidades cananeias — possivelmente devido às invasões dos chamados “Povos do Mar” —, Baal perdeu o seu poder. A vitória simbólica de Yahweh marca então o nascimento do monoteísmo ético que moldaria o judaísmo, o cristianismo e o islão.
Contudo, o texto que analisamos hoje defende que este domínio absoluto ransformou Yahweh num déspota divino. O autor, inicialmente ateu, relata um encontro com os chamados “Filhos de Baal” nas montanhas da Síria e do Líbano — uma comunidade que alegadamente guarda há milénios a fé num
deus esquecido. Para esses crentes, os deuses vivem do culto humano: à medida que os antigos deuses foram abandonados, teriam definhado como sombras, enquanto Yahweh continua a “sustentar-se” da oração de bilhões.
A analogia é poderosa — e perigosamente sedutora. Baal é aqui retratado como uma vítima esquecida, uma divindade bondosa e reprimida por uma divindade ciumenta e autoritária. Porém, este romantismo ignora ou minimiza os elementos mais sombrios do seu culto, nomeadamente o sacrifício ritual de crianças. Por mais que o autor simpatize com a alegria pagã, não se pode escamotear o peso histórico e ético desses actos.
A proposta de reabilitar Baal — ou qualquer divindade ancestral — exige muito mais do que resgatar uma estética exótica ou recuperar rituais esquecidos. Exige, acima de tudo, encarar o lado sombrio desses cultos e reconhecer o papel civilizacional do monoteísmo ao estabelecer limites éticos e morais para a relação entre o homem e o sagrado.
Nos últimos anos, temos assistido ao renascimento dissimulado de um culto à morte, em que se enaltece, de forma cada vez mais pública, o caos, a violência, o sacrifício dos inocentes — tudo em nome da autonomia, do progresso ou da ciência. O que dizer, então, do aborto legalizado, da eutanásia promovida como ato de compaixão, das guerras perpetuadas por interesses ocultos? Não são estes, em essência, os mesmos sacrifícios humanos dos antigos cultos idolátricos?
Baal é hoje invocado sob outros nomes — Saturno, Moloque, "liberdade pessoal", "direito de escolha" — mas os frutos continuam os mesmos: morte, destruição da inocência, dissolução da ordem natural, e adoração do próprio homem como deus.
Ao invés de regressar aos deuses do passado, talvez a verdadeira questão seja outra: como preservar o sagrado sem cair no fanatismo, e como venerar sem violentar? A longa história entre Baal e Yahweh não é apenas um conflito entre deuses — é um espelho da alma humana, sempre dividida entre Luz e as Trevas, entre Liberdade e Sacrifício, entre o BEM e o Mal.